domingo, 24 de dezembro de 2017

DIA DE NATAL

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.
Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
Fernando Pessoa, em 'Cancioneiro'

VIEIRA - A MULHER DO EVANGELHO

VIEIRA; A oração da mulher do Evangelho foi altíssima na consideração do que louvou, a quem louvou e por quem louvou; do mesmo modo é altíssima a voz do Rosário na consideração do que pede, a quem pede, e por quem pede. A oração panegírica ou laudatória, e a oração deprecatória.
Extollens vocem.
Para compreender a excelência e alteza de qualquer oração vocal, nas mesmas vozes ou palavras de que é composta, se devem considerar três respeitos ou três partes essenciais: o que se pede, a quem se pede, e por quem se pede; o que, a quem, e por quem. Esta mesma distinção observou a mulher do Evangelho. A sua oração foi panegírica e laudatória, e na voz que levantou: extollens vocem - tocou os mesmos três pontos e os mais altos a que podia chegar o mais levantado espírito. O que louvou foi o mistério altíssimo da Encarnação; a quem louvou foi a pessoa do mesmo Verbo encarnado; e por quem o louvou foi pela Mãe que o concebeu em suas entranhas e o criou a seus peitos: Beatus venter qui te portavit. Não pudéramos desejar nem melhor texto para dividir o nosso discurso, nem melhor guia para o seguir. A oração vocal do Rosário só se distingue desta do Evangelho pelo fim porque o fim, desta oração, como panegírica, foi louvar e a do Rosário, como deprecatória, é pedir. Aquela voz foi altíssima na consideração do que louvou, a quem louvou, e por quem louvou; e do mesmo modo é altíssima a voz do Rosário na consideração do que pede, a quem pede, e por quem pede. E estas serão as três partes do nosso discurso. Alta e altíssima a oração vocal do Rosário pela alteza das petições que nela fazemos: extollens vocem; alta e altíssima pela alteza da Majestade, a quem as presentamos: extollens vocem; e alta, finalmente, e altíssima pela alteza da intercessão de que nos valemos: extollens vocem. Ouçam agora com atenção os devotos do Rosário, e com inveja e arrependimento os que o não forem.
§ III
Primeira parte: É alta e altíssima a oração vocal do Rosário pela alteza da majestade a que presentamos nossas petições. A oração de Davi. A esfera da vista e a esfera da voz. Os céus, onde chegam os anjos com a vista, chegam os homens com a voz. Ana, mãe de Samuel, excelente figura dos que rezam o Rosário. Por que oramos a Deus enquanto está no céu? A oração do fariseu e a oração do publicano. A presença de Deus na terra e a Majestade de Deus no céu considerados na oração do Filho Pródigo.
Considerando, pois, em primeiro lugar, a alteza da majestade a que presentamos nossas petições, e começando - para maior clareza - por onde começa o Rosário, qual é a sua primeira voz? A primeira voz do Rosário é: Pater noster qui es in caelis (Mt 6, 9): Padre Nosso, que estás em os céus. - E voz que chega da terra ao céu, e ao céu onde está Deus, vede se é alta e altíssima: extollens vocem?
Nós não reparamos nesta que parece vulgaridade; mas o maior mestre de orar, que foi Davi, faz grande reparo nela: Voce mea ad Dominum clamavi, et exaudivit de monte sancto suo ( 3 ). Davi era grande contemplativo, mas nesta ocasião - que foi quando fugia de seu filho - orou vocalmente. Isso quer dizer voce mea, oração vocal. E o que muito pondera é que esta voz, saindo do vale do Cedrão, por onde caminhava, fosse ouvida no Monte Tabor da glória, onde Deus tem o trono de sua majestade: De caelo et sublimi throno gloriae suae (4) comenta S. Atanásio. O céu, onde Deus tem o trono de sua majestade, não é algum dos céus que vemos, senão outro céu sobre estes, quase infinitamente mais levantado e sublime; por isso não dizemos: qui es in caelo, senão: qui es in caelis. Da mesma frase usou Cristo, quando disse que os anjos que assistem na terra em nossa guarda sempre vêem a Deus que está, não no céu, senão nos céus: Semper vident faciem Patris, qui in caelis est (5). E, combinando um texto com outro, é prerrogativa verdadeiramente admirável que, onde chegam os anjos com a vista cheguem os homens com a voz. A esfera da voz é, sem comparação, mais limitada que a da vista. Mas isto se entende da voz com que falamos, e não da voz com que oramos. A voz com que falamos mal se estende a toda esta igreja; e a vista tem tanto maior e mais alta esfera que chega ao firmamento, onde vemos as estrelas. Porém, a voz com que oramos, não só chega ao firmamento, que vemos, que é o céu das estrelas, mas ao mesmo empíreo, que não vemos, que é o céu de Deus. O céu que vemos é o céu da terra; o céu onde está Deus é o céu do céu: Caelum caeli Domino (6). E isto é o que ponderava e admirava Davi na voz da sua oração: Voce mea ad Dominum clamavi, et exaudivit me de monte sancto suo.
Mas daqui mesmo se vê que a alteza desta voz ainda é mais maravilhosa nos que rezam o Rosário. Davi diz que clamou e bradou com a sua voz: Voce mea ad Dominum clamavi - e no Rosário não é necessário clamar, nem ainda soar. Ana, mãe de Samuel, foi uma excelente figura dos que rezam o Rosário. Dela diz o texto sagrado que, multiplicando as preces, somente se lhe viam mover os beiços, mas a voz de nenhum modo se ouvia: Cum multiplicaret preces coram Domino, tantum labia illius movebantur, et vox penitus non audiebatur (7). 0 mesmo passa cá pontualmente. Ana multiplicava as suas preces, e quem reza o Rosário também as multiplica, porque repete muitas vezes a mesma oração. A Ana só se lhe viam os movimentos da boca, porém a voz não se ouvia; e vós rezais o vosso Rosário com uma voz tão interior - e por isso mais devota - que nem os que estão muito perto vos ouvem, nem vós mesmos vos ouvis. E quando vós não ouvis a vossa mesma voz, é ela tão alta, e sobe tão alto: Extollen vocem - que chega ao céu dos céus, onde está Deus: Qui es in caelis.
Não faltará, porém, quem diga que esta circunstância de orarmos a Deus enquanto está no céu parece uma cerimônia supérflua, e não só não necessária, mas nem ainda conveniente. Comentando Santo Agostinho estas palavras, que em seu tempo ainda não eram do Rosário, mas eram as mesmas, diz assim: Non dicimus Pater noster, qui es ubique, cum et hoc verum sit, sed Pater noster, qui es in caelis ( 8 ). Deus, por sua imensidade, está em toda a parte, e não só conosco, senão em nós, em qualquer lugar onde estivermos. Logo não é necessário invocar a Deus enquanto está no céu, pois também o temos na terra quanto mais que invocá-lo no céu, parece que é afastarmos a Deus de nós, e orar de longe, quando fora mais conveniente e mais conforme ao afeto da devoção fazê-lo de perto. Não é mais conveniente falarmos com Deus onde ele está e nós estamos, que onde ele está e nós não? O mesmo Davi, tão grande mestre desta arte, pedia a Deus que a sua oração chegasse muito perto do seu divino acatamento: Appropinquet deprecatio mea in conspectu tuo (9). E o Rosário, antes de as Ave-Marias convertidas em rosas lhe darem este nome, chamava-se o Saltério da Virgem, porque o de Davi se compõe de cento e cinqüenta salmos, e o da Senhora de outro tanto número de saudações angélicas. Pois, se Davi, no seu Saltério, pede a Deus que a sua oração chegue muito perto dele: Appropinquet deprecatio mea in conspectu tuo - como nós, no Saltério da Virgem, nos pomos tão longe de Deus, ou a Deus tão longe de nós, quanto vai da terra ao céu: Qui es in caelis?
(BICO DE PENA: R. SAMUEL)

domingo, 14 de maio de 2017

Não te Fies do Tempo nem da Eternidade

Não te Fies do Tempo nem da Eternidade


Não te Fies do Tempo nem da Eternidade

Não te fies do tempo nem da eternidade
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo.
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!

Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto!

Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te digo...



Cecília Meireles, in 'Retrato Natural'